5 de abril de 2011

Compor pra quê?

Há vários anos, um compositor, brasileiro, já idoso, estava bastante deprimido. Sua esposa, embora preocupada com o estado do marido, teve de sair, enquanto que ele ficou em casa.

O casal residia numa casa própria, com um pequeno jardim e um amplo quintal.

A mulher, sempre preocupada, procurou voltar o mais cedo possível para casa.

Chegando, viu uma fumaça que subia dos fundos. Foi ao quintal. O marido estava sentado num banco, observando uma fogueira feita com uma enorme pilha de papéis velhos, onde ainda era possível identificar partituras manuscritas.

O compositor olhou para a esposa espantada e disse apenas as seguintes palavras:

– Poucos executaram essas obras durante minha vida; depois de morto ninguém mais vai tocá-las.

Faleceu em seguida a este incidente. Algumas de suas obras escaparam do fogo porque estavam em poder de pessoas amigas. Hoje, porém, está praticamente esquecido.

Mais recentemente, outro compositor, brasileiro, talvez inspirado pelo gesto do colega, teve um surto semelhante e quis destruir todo o trabalho de uma vida do mesmo modo, queimando-o. Os amigos o impediram.

Compor pra que?

Os nomes dos protagonistas? Permita-me, leitor, não revelá-los. Casos isolados? Não. Não são casos isolados. Por diversas vezes ouvi de compositores, brasileiros, a confissão de que já teriam tido o mesmo desejo.

Os leitores, sempre atentos, perceberam que destaquei o fato de serem compositores brasileiros. E, sempre atento, poderia perguntar se tal desejo poderia passar na mente de um estrangeiro.

Sem dúvida, meu amigo, minha amiga, sem dúvida. Não vou citar exemplos, nem revelar nomes, mas, acreditem: isto já aconteceu e pode se repetir em qualquer lugar deste nosso planeta.

Não interessa se são latino-americanos, norte-americanos, europeus, africanos ou asiáticos; é como dizem os que gostam de um dito popular, mesmo que seja importado: “c’est tout la même chose”.

E por que isso acontece? Talvez porque os compositores não sejam conhecidos e por causa disso os intérpretes, não os conhecendo, não os apresentam. Talvez os compositores sejam maus compositores e suas obras, consequentemente, são más obras.

Aqui tem um pequeno probleminha. Como saber se as obras são más, uma vez que elas não foram executadas? Ora, diriam os leitores atentos, os intérpretes as examinaram e viram que eram más.

É uma resposta razoável. Já que levantei a possibilidade de que os compositores são maus compositores, então suas obras são obras más. Está certo. Não há o que discutir.

Peço desculpas pela insistência, mas, se por um acaso os intérpretes não entenderam as obras? Sei que parece um absurdo, porém, os amigos leitores têm que concordar comigo ser possível isto. Neste caso, improvável, claro, porque os bons intérpretes com a formação que possuem, não têm quaisquer dificuldades para entender uma obra e, em caso de dúvidas, tenho a mais absoluta certeza de que consultariam os compositores. No entanto, insisto: e se não entenderam as obras?

Uma questão sem resposta.

Em toda a história da música universal sempre houve intérpretes que apresentaram as obras compostas em seu tempo. Esta prática foi o que motivou o desenvolvimento da música em nossa civilização. Se isto não ocorresse, hoje em dia, em todos os meios de comunicação existentes e também, teatros, auditórios, festas, seja lá o que for, estaríamos cantando e escutando, em todas as versões possíveis, vocais e instrumentais, Greensleeves.

Ad nauseum.


Nenhum comentário:

Postar um comentário